Esqueça os padrões (por um momento)
Certos problemas específicos são resolvidos melhor se não tentarmos encaixar tudo em algum padrão. MVC não é uma bala de prata, é um modelo, um guia que nos ajudar a organizar melhor sistemas complexos. Camadas consistem numa divisão lógica de responsabilidades, mas às vezes é melhor considerar melhor a interação entre objetos sem usar papéis e estereótipos fixos.
Porém, existem muitos cenários, como acredito ser este em questão, em que o problema é resolvido mais adequadamente com pura orientação a objetos. Jogos e outros casos específicos comumente caem nesta categoria, com exceção, obviamente, da interface com o usuário.
No fim, quase sempre isso acaba no Model
, mas vamos esquecer disso por um momento.
Crie sua API
Uma forma de pensar no problema é utilizando uma abstração, no caso, uma interface que funcione como uma API e disponibilize a funcionalidade necessária para o restante do sistema.
Vamos fazer um exercício de modelagem!
Bem, estamos falando de um jogo, composto por um tabuleiro e suas peças, jogado por dois jogadores (mesmo que sejam virtuais). Parece razoável pensar nas classes:
Jogo
Tabuleiro
Peca
Jogador
Para começar um novo jogo, poderíamos requerer os dados dos jogadores ou, se for necessário continuar um jogo salvo, requerer também um tabuleiro. Por exemplo:
class JogoBuilder {
Jogo comecar(Jogador j1, Jogador j2);
Jogo continuar(Jogador j1, Jogador j2, Tabuleiro t);
}
Aqui entra uma questão de gosto. Eu poderia omitir o primeiro método e considerar que para começar um novo jogo somente seria necessário passar um tabuleiro no estado inicial. Por exemplo:
class JogoBuilder {
Jogo iniciar(Jogador j1, Jogador j2, Tabuleiro t);
}
Poderia ainda haver um parâmetro para definir de quem é a vez:
enum QuemJoga { J1, J2 }
class JogoBuilder {
Jogo iniciar(Jogador j1, Jogador j2, Tabuleiro t, QuemJoga q);
}
Precisaríamos de uma forma de construir o tabuleiro:
class TabuleiroBuilder {
Tabuleiro carregar(JogoSalvo j);
Tabuleiro criarNovo(); //tabuleiro na posição inicial
}
Pensando em termos de API, a classe Jogo
precisa disponibilizar determinados serviços para um código cliente, que pode ser um sistema web, desktop, mobile ou mesmo um web service. Algo assim:
class Jogo {
Tabuleiro getTabuleiro();
Jogador getJogador1();
Jogador getJogador2();
QuemJoga getQuemJogaAgora();
}
A interface de Jogo
agora nos permite saber qual o estado do tabuleiro, quem são os jogadores e quem pode fazer o próximo movimento. Tudo o que é necessário para representar o jogo. Porém, falta algo para que se possa efetivamente jogar.
Bem, o responsável pelas posições das pessoas é claramente o Tabuleiro
. Mas, para representar bem o tabuleiro, precisamos saber o que tem em cada posição.
class Posicao {
byte getLinha();
byte getColuna();
Optional<Peca> getPeca(); //pode ou não haver uma peça
}
Para representar o tabuleiro, poderíamos chegar a algo assim:
class Tabuleiro {
Posicao[][] getPosicoes(); //permite imprimir o tabuleiro
Posicao getPosicao(byte linha, byte, coluna); //permite olhar uma posição específica
}
Na hora de movimentar, o jogador precisa selecionar a peça e a posição para onde vai movimentá-la. A seleção da peça é uma questão de UI e não devemos abordar isso na API. Vamos imaginar que a UI guarda a referência para a peça na posição selecionada e depois ela pode informar nossa API qual peça será movimentada.
No entanto, como a UI pode determinar para onde a peça pode ser movimentada? Devemos fazer uma nova chamada para a API a cada tentativa e emitir um alerta em caso de erro. Uma abordagem diferente seria listar as possibilidades de movimento. Por exemplo:
class Tabuleiro {
...
Posicao[] getPossibilidadesMovimento(Posicao p);
}
O método acima recebe a posição selecionada pelo usuário e determina quais os possíveis movimentos. Agora, a UI pode fazer algo mágico como destacar os possíveis destinos assim que o usuário seleciona uma peça para mover.
Caso haja necessidade de testar se um movimento é válido, a API pode fornecer outro método:
class Tabuleiro {
...
boolean ehMovimentoValido(Posicao atual, Posicao desejada);
}
Mas em geral não é necessário fazer isso.
Por fim, para movimentar a peça:
class Tabuleiro {
...
void movimentarPeca(Posicao atual, Posicao nova) throws MovimentoInvalidoException;
}
Note que na modelagem acima, eu tomei duas decisões importantes:
- Não encapsular o movimento. Uma alternativa seria criar uma classe
Movimento
para encapsular as posições. Não fiz isso porque não vejo outro atributo que possa ser requerido, mas se no futuro o movimento pudesse ter algo a mais do que as duas posições pode ser uma vantagem ter um novo objeto.
- Tratar um movimento inválido como erro. Fiz isso neste caso porque minha API foi projetada para dar as opções de movimento, então, em teoria, um movimento inválido não deveria ocorrer e é um erro. Sem, por outro lado, eu deixar o jogador ficar tentando mudar a posição da peça em qualquer lugar do tabuleiro, talvez seja melhor trocar isso por um retorno de sucesso ou fracasso.
Para colocar a cereja no bolo, um último passo seria atualizar a classe Jogo
com o método que permite o jogador efetivamente jogar:
class Jogo {
....
void jogar(Jogador atual, Posicao atual, Posicao nova) throws MovimentoInvalidoException, NaoEhAVezDesseJogadorException;
}
O método acima deve validar se o jogador atual é o dono da peça. Se tudo estiver ok, ele move a peça e muda a vez para o outro jogador.
Um possível problema dessa implementação é que Tabuleiro
é mutável, então alguém poderia fazer isso:
jogo.getTabuleiro().movimentarPeca(...);
Isso poderia afetar o estado do tabuleiro sem que Jogo
faça as validações adequadas e atualize o estado do jogo atual. Há duas formas de resolver isso:
- Fazer o método
Jogo.getTabuleiro
retornar um tabuleiro imutável. Isso faz com que somente seja possível afetar o tabuleiro pela interface de Jogo
.
- Fazer com que cada mudança no
Tabuleiro
crie um outro tabuleiro. Essa abordagem é mais "custosa" e termos de memória, mas permitiria, por exemplo, que tivéssemos o histórico dos movimentos.
No caso da segunda abordagem, poderíamos mudar o método movimentarPeca
de Tabuleiro
da seguinte forma:
class Tabuleiro {
...
Tabuleiro movimentarPeca(Posicao atual, Posicao nova) throws MovimentoInvalidoException;
}
Assim, a cada movimento, um novo Tabuleiro
é retornado com o novo estado e o Jogo passa a apontar para esse novo objeto, talvez armazenando o anterior numa lista, que permitiria fazer o replay do jogo posteriormente.
Tudo pronto! E ao mesmo tempo nada pronto! Agora é só implementar.
Agora volte aos padrões
Depois que o core do jogo estiver bem modelado podemos voltar a pensar em como modelar o sistema em camadas e aplicar o padrão MVC, criar a lógica de controle e o visual do aplicativo.