Talvez porque seja mais simples determinar a invariante do loop através do while
(e do for
) do que do do..while
. E a invariante é algo que é sempre necessário para se entender a semântica do código, esteja ele colocado de forma explícita ou implícita (i.e. só na cabeça do programador).
Invariante
Todo código [imperativo] possui um conjunto de variáveis que progride do estado E0
pro E1
, pro E2
, etc, até chegar no estado final En
. Tipicamente, o estado é afetado por cada instrução única, e pode-se sumarizar seu conjunto de valores antes e depois de cada instrução:
{}
x = 10;
{ x = 10 }
y = 20;
{ x = 10, y = 20 }
z = 2*x + y;
{ x = 10, y = 20, z = 40 }
x = 30;
{ x = 30, y = 20, z = 40 }
...
Quando se inclui loops, no entanto, não é possível se estabelecer os valores exatos das variáveis, pois cada instrução pode executar diversas vezes e o estado será diferente entre uma e outra:
{}
a = 3;
{ a = 3 }
b = 5;
{ a = 3, b = 5 }
r = 0;
{ a = 3, b = 5, r = 0 }
while ( a > 0 ):
{ a = ?, b = 5, r = ? }
r += b;
{ a = ?, b = 5, r = ? }
a--;
{ a = ?, b = 5, r = ? }
{ a <= 0, b = 5, r = ? }
return r;
Para entender o estado ao final da execução (implicitamente, todo mundo deve ter percebido que r
conterá o produto a * b
, certo?), se usa a técnica do invariante: estabeleça uma condição que deve ser verdadeira antes e depois do loop executar:
{ r = (3-a)*b }
Verifique que de fato ela é verdadeira antes:
{ a = 3, b = 5, r = 0, r = (3-a)*b = (3-3)*5 = 0 } OK
E que, se ela for verdadeira depois, ela conterá o resultado desejado:
{ a = 0, b = 5, r = (3-a)*b = (3-0)*5 = 3*5 } OK*
Por fim, verifique se - a cada execução do loop - o invariante começa verdadeiro e termina verdadeiro:
{ a = a0, b = 5, r = (3-a)*b = (3-a0)*b } OK, Premissa
r += b;
{ a = a0, b = 5, r = (3-a0)*b + b } X
a--;
{ a = a0-1, b = 5, r = (3-a0)*b + b = (3-a0+1)*b = (3-(a0-1))*b = (3-a)*b } OK
Assim temos a prova de que o código acima realmente produzirá o resultado esperado.
* Nota: faltou aqui provar que, partindo de um a
inteiro positivo, ele sairá do loop como zero, e não como qualquer número menor que zero. Como o corpo do loop decrementa a
apenas uma vez, não tem como ele ficar negativo, mas infelizmente não sei como formalizar isso...
Aplicando ao while
e ao do..while
A técnica de análise descrita acima é um tipo de método formal, mas ainda que tal formalismo seja raramente usado na prática, ao menos na cabeça do programador uma análise semelhante é feita, pra entender por que ao final de um loop o programa estará num estado que corresponda ao resultado da computação desejada. Muitos bugs são decorrência da pessoa não perceber que tal condição que se supunha ser verdadeira durante e após um loop na verdade não é (levando ao processo tedioso de depurar o loop passo a passo no debugger, ou talvez imprimindo valores de variáveis na tela conforma o loop avança).
Num programa bem estruturado a função de cada variável é clara, o progresso dos estados é simples e homogêneo, e ainda que o invariante não esteja formalizado o programador consegue perceber que algo "se mantém" entre uma execução do loop e outra. Mas e quanto ao do..while
, esse mesmo raciocínio não se aplicaria?
O problema do do..while
é que - como apontado nas demais respostas - ele surge em situações em que é obrigatório que o corpo do laço execute ao menos uma vez. Por que é obrigatório? Normalmente porque tem alguma variável que não foi inicializada direito, um valor que pode ou não ser nulo, etc. Porque se nada disso fosse verdade, se o estado do programa fosse perfeitamente válido mesmo se o loop não executasse nenhuma vez, não haveria a necessidade do do..while
.
Sendo assim, a análise de um código que usa do..while
é mais trabalhosa do que um que não usa. Pois a princípio, na primeira iteração do loop o invariante ainda não é necessariamente verdadeiro, enquanto em todas as seguintes ele precisa ser. Consequentemente, é necessário escrever um corpo que simultaneamente: 1) leve o programa de um estado em que o invariante é falso para um que o invariante é verdadeiro; 2) com as mesmas instruções, parte de um estado em que o invariante vale para outro que ele continue valendo. Isso é complicado, e acaba exigindo que se pense em cada linha de código duas vezes (na primeira iteração vai acontecer isso, nas outras vai acontecer aquilo), inclusive com a possibilidade de se introduzir if
s para tratar de modo diferenciado da primeira iteração e das demais.
break
, continue
, return
etc.
Incidentalmente, esse mesmo problema ocorre quando um loop é interrompido "abruptamente" no meio da sua execução (via break
, continue
, return
) ou mesmo quando uma função se encerra prematuramente. Certamente você já deve ter visto algum "conselho" sugerindo evitar essas construções, da mesma forma como todo mundo já foi advertido em relação ao goto
. Quebras de fluxo mascaram/invalidam o invariante...
Minha conclusão, no entanto, é a mesma que nos demais casos: use do..while
quando fizer sentido, mas certifique-se de que compreende bem a progressão de estados entre uma iteração e outra, e se guarde contra qualquer possibilidade de deixar seu programa num estado indefinido. Na minha experiência pessoal, isso muitas vezes implica em refatorar o código, o que acaba muitas vezes me levando a - veja só - substituir o do..while
por um while
! Isso já aconteceu tantas vezes que, ao projetar um código novo, já começo por prestar atenção a determinados padrões, mover código "especial" para fora do loop, e a consequência natural é cair numa situação em que o while
é o laço mais adequado ao meu caso.
(Por fim, um adendo: muitas vezes a única função de um loop é iterar sobre uma coleção, caso em que há construções mais apropriadas para isso do que um loop - foreach
, map
, etc, em particular porque simplificam o caso especial da coleção estar vazia; em outras, o loop trabalha de forma muito próxima com um índice ou contador, de modo que é mais fácil controlar o número mínimo de iterações através das condições envolvendo o índice do que via uma estrutura de loop diferente; o único caso em que um do..while
me parece natural - e esse caso é raro - é quando a lógica do seu código é "tente fazer algo, e se não der certo tente de novo", uma típica aplicação de polling por exemplo, algo cada vez mais raro nos dias de hoje...)