Você pode aceitar a inconsistência eventual numa modelagem física [0,N]
como na resposta do @VictorStafusa. Ou então usar um banco de dados que aceita inconsistências no meio de transações. Essa opção não é comum, eu particularmente só conheço o SQLite que faz isso.
Como proceder nesse caso? Bem, no SQLite eles chamam essa consistência de chave estrangeira como "chave estrangeira deferida". Está na seção 4.2 desse artigo explicando sobre chaves estrangeiras.
O conceito da "chave deferida" é:
Se estou dentro de uma transação, então ocasionalmente a consistência será alcançada, não preciso verificar a cada instante se tudo está consistente
Normalmente o conceito utilizado com "chave estrangeira" é o que o SQLite chama de "chave estrangeira imediata":
Não importa onde esteja nem pra onde vou, tudo precisa estar consistente a todo e qualquer instante!!!
Nesse modelo de consistência por "chave estrangeira deferida", basta iniciar uma transação antes das inserções e então commitar quando se termina de operar.
Eu acho particularmente valioso essa modelagem de consistência apenas após o término de transação quando se tem dados circulares.
Imagine que você está modelando uma equidna. Esses animais estranhos, não bastando ser um dos poucos mamíferos ovíparos, possuem um pênis de múltiplas cabeças. E os machos usam essas cabeças de modo muito interessante: eles revezam qual cabeça vai ser usado para copular, de modo que todas as cabeças são usadas antes de se repetir uma delas.
ERRATA: a equidna não faz revezamento da cabeça do pênis como eu havia citado no parágrafo acima. Na verdade, ela expele pelos dutos seminais até duas levas de sêmen por cabeças distintas, mas vale pelo exercício mental
Para aqueles que não conhecem esses seres esquisitos, com corpo de ouriço e língua de tamanduá que bota ovos e dá de mamar a seus descendentes, segue sua foto (cortesia cavada pelo @Bacco): link para a equidna
Nesse caso, poderíamos modelar assim:
create table equidna (
id int primary key,
tag varchar(50) not null
)
create table penis_equidna (
id int primary key,
equidna_id int not null,
prox_penis_id int not null,
em_uso int not null default 0,
FOREIGN KEY (equidna_id) REFERENCES equidna(id),
FOREIGN KEY (prox_penis_id) REFERENCES penis_equidna(id) NOT DEFERRABLE
)
Note que estou aqui criando uma lista circular de pênises de equidnas. Para atualizar qual será o próximo pênis a estar em uso para a próxima cópula da equidna 13, basta executar o seguinte update:
WITH p_em_uso AS (
SELECT
id,
prox_penis_id,
anterior_penis_id,
equidna_id
FROM
penis_equidna
WHERE
em_uso = 1
)
UPDATE penis_equidna
SET
em_uso = CASE
WHEN EXISTS (SELECT 1 FROM p_em_uso WHERE p_em_uso.prox_penis_id = penis_equidna.id AND p_em_uso.equidna_id = penis_equidna.equidna_id) THEN 1
ELSE 0
END
WHERE
equidna_id = 13
Consulta não verificada ainda, espero verificar em breve e corrigir todo qualquer e eventual erro nela contido
No caso, para cadastrar a equidna 13 e seus 4 pênis, teria sido necessário isso:
INSERT INTO equidna(id, tag) VALUES (13, 'abc')(
BEGIN; -- começa uma transação SQLite
INSERT INTO penis_equidna(id, equidna_id, prox_penis_id, em_uso) VALUES (1, 13, 2, 1);
INSERT INTO penis_equidna(id, equidna_id, prox_penis_id, em_uso) VALUES (2, 13, 4, 0), (4, 13, 3, 0), (3, 13, 1, 0)
COMMIT;
Note que a consistência só será alcançada quando a última linha for inserida, fechando portanto o círculo.
Dito esse modelo de consistência, eu não consigo modelar de nenhum jeito óbvio sem usar check constraints
de modo abusivo um relacionamento de [1,N]
para [1,N]
. Até acho que seria melhor permitir essa inconsistência do zero. Não me parece certo depois de remover uma casa eu ser obrigado a remover uma pessoa (usando a modelagem da resposta do @VictorStafusa).
Um caso real dessa modelagem
Estava de bobeira no chat quando o @gato surgiu com um problema de modelagem de estrutura no banco de dados (início mais ou menos aqui).
O problema dele eu identifiquei mais ou menos como o seguinte:
Tenho sensores de incêndio em diversos locais. Por exemplo, o km 12 (no estado de SP) da BR-116 é o local identificado por 1
, já o km 13 dela é o local identificado por 2
.
Esses sensores disparam alertas, que devem ficar armazenados no banco. Esses alertas vem com o identificador do sensor que o disparou e a intensidade do incêndio identificado. Porém, em tese, um mesmo ponto de incêndio pode disparar alarmes em diversos sensores no mesmo local. Então, cada local só pode ter um ponto de incêndio "ligado" por vez, e todo alerta se refere sempre a um ponto de incêndio.
Eu consegui inferir a seguinte modelagem no modelo MER:
No caso, também detectei um detalhe importante: a inserção de um alerta
pode gerar um novo ponto_queimada
! Como se fosse um gatilho de criação!
Então, como fazer isso? Bem, pensei em realmente usar um gatilho. Poderia ter sido um procedimento em SQL ou então alguma solução programática a nível de aplicação. Trigger
me pareceu mais natural, entretanto.
A ideia da minha trigger
é:
- verificar se já existe um ponto de queimada naquela região
esse ponto de queimada não pode ter sido contido
- se não existir esse ponto de queimada, inserir ele
- agora o ponto de queimada simplesmente existe (se não existia antes, agora existe), então posso inserir o alerta apontando para o alerta correto
Eu pensei nessa trigger
substituindo uma inserção. No caso, eu pensei em ter a alertas_view_insercao
, em que ela não teria a informação de id_ponto_queimada
/chave estrangeira para ponto de queimada. Segue um pseudocódigo para essa trigger
(original):
create trigger insteadof insert on alertas_view_insercao as
begin trigger
insert into ponto_queimada
select
'N'as CONTIDA
... informações
where not exists (
select top 1 1
from ponto_queimada pq
inner join alerta a on pq.id_ponto_queimada = a.id_ponto_queimada
inner join sensor s on a.id_sensor = s.id_sensor
inner join local l on l.id_local = s.id_local
where pq.contida = 'N' and l.id_local = inserted.id_local
);
with q as ( --se não existia um ponto_queimada antes, agora existe...
select top 1 pq.id_ponto_queimada
from ponto_queimada pq
inner join alerta a on pq.id_ponto_queimada = a.id_ponto_queimada
inner join sensor s on a.id_sensor = s.id_sensor
inner join local l on l.id_local = s.id_local
where pq.contida ='N' and l.id_local = inserted.id_local
)
inser into alerta
select
q.id_ponto_queimada,
... informações
from q
end trigger
A ideia da trigger
na view
é:
- como é uma
view
, o "usuário" só pode informar as colunas que EU quero
- por usar
insteadof
, o efeito da inserção é substituído pelo conteúdo da trigger
Diversos bancos suportam operações em views
(SQLite, SQL Server, etc). O momento insteadof
é conhecido como instead of
(com espaço) pelo SQLite.
Com essa trigger
, ao registrar um novo alerta
através da alertas_view_insercao
, o próprio banco se preocupará em informar a qual ponto_queimada
esse alerta se refere. O banco mesmo verifica se existe um ponto_queimada
adequado e, na sua não existência, criará um novo.