A resposta curta é "Porque definiram assim".
Para elaborar melhor e dar um pouco mais de embasamento, segue abaixo uma adaptação desta resposta do SOen, cujo autor diz ter sido membro do comitê IEEE-754 - que por sua vez, é responsável pelo padrão IEEE 754, que define todo o funcionamento dos números de ponto flutuante (do qual o NaN
faz parte).
Além da tradução/adaptação, também juntei o texto com outras fontes (tanto do SOen quanto de outros lugares) e alguns adendos meus, a fim de dar um panorama mais geral sobre o motivo de NaN
não ser igual a ele mesmo.
Adaptação da resposta do SOen para a pergunta "Qual a justificativa para todas as comparações com NaN
retornarem false
?"
Primeiramente, os números de ponto flutuante não são números reais, e a aritmética de ponto flutuante não satisfaz os axiomas da aritmética real. A Lei da Tricotomia (que diz que todo número real ou é negativo, ou positivo, ou zero) não é a única propriedade da aritmética real que não se aplica aos números de ponto flutuante, e nem é a mais importante. Existem outros casos, como por exemplo:
- A soma não é associativa.
- A lei distributiva não se aplica.
- Há números de ponto flutuante que não possuem inversos.
Esta lista poderia continuar por horas... Enfim, não é possível especificar um tipo aritmético de tamanho fixo que satisfaça todas as propriedades da aritmética real que conhecemos. O comitê IEEE 754 tinha que decidir entre seguir todas as regras ou quebrar algumas delas. A decisão foi guiada pelos seguintes princípios:
- Quando possível, ter o mesmo comportamento da aritmética real.
- Quando não for possível, tentar fazer com que as violações sejam previsíveis e fáceis de diagnosticar (ou o mais próximo possível disso).
Por exemplo, o predicado (y < x)
está perguntando se y
é menor que x
. Se y
for NaN
, então ele não é menor que nenhum outro valor de ponto flutuante, por isso a resposta é necessariamente false
, para qualquer valor de x
.
Eu disse que a Lei da Tricotomia não se aplica à valores de ponto flutuante. No entanto, há outra propriedade similar que se aplica. A cláusula 5.11, parágrafo 2 do padrão 754-2008 diz o seguinte:
Quatro relações mutuamente exclusivas são possíveis: "menor que", "igual", "maior que" e "não-ordenado". A última se aplica quando pelo menos um dos operandos é NaN
. Todo NaN
deve ser considerado não-ordenado com relação a qualquer coisa, inclusive ele mesmo.
Por mais que o tratamento de NaN
possa exigir código extra, geralmente é possível (embora nem sempre seja fácil) estruturar o código de forma a tratar NaN
's corretamente. Quando não for possível, poderá ser necessário um código adicional, mas é um preço pequeno a se pagar pela conveniência que o fechamento algébrico trouxe para a aritmética de ponto flutuante.
Muitos podem argumentar que teria sido mais útil manter a Lei da Tricotomia e a propriedade reflexiva da igualdade (que diz que "qualquer coisa é igual a ela mesma"), pois definir que NaN
é diferente dele mesmo não parece preservar nenhum axioma com o qual estamos familiarizados. É compreensível que muitos simpatizem com esta ideia, mas acho que vale a pena dar um pouco mais de contexto.
Meu entendimento ao conversar com o Professor Willian Kahan (autor deste artigo e considerado o "Pai do Ponto Flutuante") é que a definição de NaN != NaN
tem origem em duas considerações pragmáticas:
x == y
deveria ser equivalente a x - y == 0
, na medida do possível. Além de ser um teorema da aritmética real, isso faz com que a implementação da comparação (no nível do hardware) seja mais eficiente em termos de consumo de espaço, o que era de extrema importância na época em que o padrão foi criado. Vale notar, porém, que esta regra é violada quando x
e y
são iguais a infinito, então este item não é um grande motivo por si só; embora pudesse ter sido alterado por exemplo para (x - y == 0) or (x and y are both NaN)
).
- O mais importante é que não havia um predicado como
isnan()
na época em que o NaN
foi formalizado na aritmética do processador 8087. Ele foi necessário para prover aos programadores um meio conveniente e eficiente de detectar NaN
e que não dependesse das linguagens de programação implementarem uma operação como isNaN()
(o que poderia levar anos lembre-se, era outra época). Sobre isso, Kahan escreveu no artigo já citado:
Se não tivesse um jeito de se livrar do NaN
, eles seriam tão inúteis quanto os Indefinites (conceito similar dos computadores CRAY). Assim que um NaN
é encontrado, seria melhor que o processamento fosse interrompido em vez de continuar por um tempo indeterminado até chegar a uma conclusão indefinida. É por isso que algumas operações com NaN
devem retornar resultados que não são NaN
. Quais operações?
É inevitável que as pessoas discordem sobre quais seriam essas operações, mas isso não lhes dá o direito de resolver estas questões fazendo escolhas arbitrárias. Toda função real (não lógica) que produza o mesmo resultado em ponto flutuante para todos os valores numéricos finitos e infinitos passados como argumento deveria produzir o mesmo resultado se o valor for um NaN
.
As exceções são os predicados x == x
e x != x
. Estes são respectivamente 1 e 0 para todo valor infinito ou número finito x
, mas o inverso se x
for NaN
. Estas são as únicas diferenças excepcionais entre NaN
e números, nas linguagens que não possuem uma constante similar a NaN
ou um predicado como isNaN(x)
.
Talvez este pragmatismo tenha sido equivocado, e o padrão poderia ter obrigado a criar algo como o predicado/operação isnan()
. Mas isso teria tornado quase impossível o uso do NaN
de forma eficiente e conveniente, pois o mundo ainda teria que esperar vários anos até que as linguagens de programação o adotassem. Não acredito que teria sido uma escolha razoável.
Sendo bem direto: o resultado de NaN == NaN
não vai mudar. É melhor aprender a conviver com isso em vez de reclamar na internet (nota: a pergunta original tem um tom que pode ser entendido como "reclamação").
A partir daqui não é mais a tradução da resposta do SOen, e sim minha conclusão ao lê-la.
Meu entendimento
Pelo que entendi, um conjunto de decisões foram tomadas levando-se em conta o contexto da época (hardware/software, princípios matemáticos e de design, etc). O NaN
poderia ter sido implementado de várias maneiras, como por exemplo um erro/exceção que parasse a execução do programa. Optou-se por um valor "especial" com um comportamento "fora da curva", de forma a permitir que o programa continue executando (e bastaria verificar se o resultado foi NaN
, para então tomar as ações apropriadas, como por exempo interromper o algoritmo).
No fim, acabaram decidindo que NaN == NaN
deve ser falso, pelos motivos já explicados acima. De certa forma foi uma escolha "arbitrária", mas pelo menos houve um raciocínio por trás e todo um embasamento técnico (e claro que também poderiam ter definido que NaN == NaN
é verdadeiro, mas o fato é que não fizeram e agora temos que conviver com isso).
Para mim, esta é a única resposta correta para "Por que é assim?". NaN
não é igual a ele mesmo porque decidiram que é assim. Qualquer outra "resposta" na verdade está falando sobre os motivos que - no meu entender - potencialmente levaram à decisão:
- "
NaN
não é um número, por isso não faz sentido ele ser igual a ele mesmo."
- "
NaN
equivale a um valor indeterminado (não tem um valor de fato), por isso não tem como ser igual a nada."
- "
Nan
é um caso especial."
- etc...
Estas frases, a meu ver, explicam mais o raciocínio que pode ter levado à decisão do que o motivo real dela ter sido tomada. O motivo real é: considerando tudo que já foi dito acima (o contexto da época, os princípios de manter-se fiel à aritmética real até certo ponto, etc), acabaram decidindo que NaN
ser diferente dele mesmo era a "melhor" opção.
<speculation>Se tivessem decidido que NaN
é igual a ele mesmo, talvez hoje estivéssemos discutindo se não deveria ser diferente, usando os mesmos argumentos acima :-)</speculation>
Outras respostas e links que pesquisei sempre seguem esta linha de explicar que NaN
é um "valor especial", "diferente" e por isso tem esse comportamento distinto dos números "normais". No fim, ele não é considerado um número de fato (por isso é chamado de "Not a Number"), e sim um tipo de placeholder que representa um valor ou estado indefinido. Esta resposta, por exemplo, defende que o nome não é bom porque confunde, e que deveria se chamar "Exceção Numérica" ou algo do tipo. Isso deixaria mais claro seu comportamento distinto e talvez causasse menos estranhamento ao ser usado (ou não, agora não temos mais como saber).
O NaN
seria, de certa forma, o equivalente ao conceito matemático de Undefined (Indefinido), quando uma expressão não tem um valor associado. Tanto que muitas operações matemáticas que são consideradas indefinidas produzem NaN
nas linguagens de programação que usam o IEEE 754, como dividir zero por zero ou subtrair um infinito do outro, que geralmente resultam em NaN
(além dos outros casos já citados em uma das respostas).
Esta é, aliás, a linha de raciocínio usada por muitos para explicar o seu comportamento tão peculiar (se não tem valor definido, não tem como ser comparado com nada, nem com ele mesmo - mas novamente, isso explica um dos motivos que pode ter pesado para a decisão final, mas não é "a resposta" em si).
Enfim, no fundo a resposta é "Porque definiram assim" (com embasamento, claro, mas ainda sim uma decisão "arbitrária").